A gaguez existe há milhares de anos e é cada vez mais um assunto tabu. Por alguma estranha razão, parece bastante embaraçoso falar dela. E falar com alguém que gagueja ainda mais. As pessoas sentem-se pouco à vontade e muitas vezes tentam “ajudar”, terminando aquilo que o gago está a tentar dizer, uma das piores coisas que se pode fazer a quem tem este tipo de problema.
Este assunto tem uma conotação de tal maneira negativa que grande parte das pessoas que me procuram, principalmente quando se trata de adolescentes ou adultos, não se consegue referir ao seu problema como gaguez.
As pessoas tendem a ver a gaguez como algo que as prejudica nas suas relações e no seu trabalho, que muitas vezes torna extremamente difíceis e desagradáveis as situações em que têm que falar, que frequentemente as leva a desistir de determinadas coisas, achando que é um problema que não tem “cura”.
É importante desmistificar este assunto. Não há qualquer razão para que seja tabu e muito menos para que seja um estigma. Quem gagueja não tem de ser uma pessoa marcada ou limitada, nem sequer tem de viver o resto da sua vida com esse problema.
Eu não costumo falar de “tratamento” porque a gaguez não é uma doença, nem é provocada por qualquer deficiência. Não há nada no corpo da pessoa que a obrigue a falar assim. É simplesmente uma coisa que ela faz, embora não saiba porquê, nem o consiga deixar de fazer.
O tipo de terapia usada para a corrigir é bastante variado porque, por um lado, não há uma fórmula que a elimine e, por outro, são várias as especialidades que com ela trabalham (terapeutas da fala, psicólogos e psiquiatras, entre outros).
A minha abordagem baseia-se precisamente no facto de a gaguez não ser uma doença, ou seja, não é de tratamento que a pessoa precisa. Muitas vezes (nem sempre) as pessoas falam de um acontecimento traumático que terá provocado a gaguez. Essa “causa” não me preocupa especialmente porque, mesmo que tenha havido realmente algo que desencadeou a situação, isso é uma ínfima parte, uma pequena pedra no início de todo esse processo.
O medo de falar
A gaguez funciona como uma bola de neve: quando a pessoa percebe que gagueja fica com um certo stress de cada vez que tem de falar; essa tensão vai fazer com que a pessoa gagueje mais, o que vai reforçar o stress e agravar a gaguez… num círculo vicioso que nunca mais acaba.
Em muitos casos esta é a única causa. Algumas crianças têm uma fase, por volta dos dois anos, em que gaguejam naturalmente. Elas não se apercebem disso; é perfeitamente normal e não tem qualquer problema.
Na maioria dos casos, esta situação resolve-se por si mesma passado algum tempo. Mas se a família começa a reparar que a criança gagueja e fica preocupada, esta acaba por sentir que há qualquer problema com a sua maneira de falar, o que não é de todo verdade, e começa a sentir-se menos à vontade para falar.
Muito rapidamente pode começar a tal “bola de neve” e em pouco tempo a criança terá, de facto, uma gaguez que não irá desaparecer sem a intervenção de um especialista.
Pela minha experiência, posso dizer que é possível acabar com uma gaguez seja qual for a idade da pessoa. No adulto, é importante que ele perceba e reconheça que tem esse problema e queira mesmo acabar com ele, dispondo-se a trabalhar para o conseguir.
Eu começo por partir do facto de que a pessoa gagueja muito mais quando está numa situação que lhe é particularmente difícil. Noutra circunstância mais calma, a sua fala pode ser muito mais fluida. Já tenho trabalhado, inclusivamente, com pessoas que só gaguejam de vez em quando, em situações muito específicas, e que nunca chegam a fazê-lo na minha presença. É mais difícil, pois têm que ter uma auto-crítica muito mais precisa e apurada, mas também é possível trabalhar, mesmo com situações que eu não presencio.
O objectivo não é que a pessoa consiga não gaguejar ao pé do terapeuta, mas ajudá-lo a não o fazer em qualquer situação. O trabalho só acaba quando ela consegue fazer toda a sua vida normal sem gaguejar.
O objectivo acaba por ser o de inverter a tal “bola de neve”. O problema da gaguez são as repetições e os bloqueios que a pessoa faz quando fala, tendo portanto um ritmo verbal fracturado, não contínuo. Se conseguir e, principalmente, se souber que consegue falar sem fazer isso, deixa de sentir esse stress de cada vez que se aproxima uma situação difícil; A fluência do seu discurso melhora, o que vai aumentar a sua auto-confiança.
Portanto, o meu trabalho consiste em ensinar como falar sem gaguejar e acompanhar o processo de “maturação” do seu novo ritmo verbal, até que tenha segurança suficiente para que a pessoa sozinha consiga “desactivar” qualquer tentativa de repetição ou bloqueio que surja.
Isto pode parecer uma abordagem um pouco simplista mas, na realidade, é um processo bastante trabalhoso, o de deitar fora aquele velho hábito que durante algum tempo vai tentando permanecer.
Por vezes, as pessoas perguntam ao terapeuta se conseguirá acabar com a sua gaguez, mas no início do tratamento é impossível saber, porque isso depende muito mais da própria pessoa do que do especialista.
Ao longo dos anos em que eu tenho trabalhado com este problema, têm surgido essencialmente dois tipos de pessoas: aquelas que se dispõem a trabalhar e que, num período mais ou menos longo, controlam a sua gaguez, e as que desistem logo no início da terapia, ficando com a gaguez sem grande alteração, como é natural.
Mas, mesmo assim, é um trabalho motivador, devido à rapidez com que se começam a ver os resultados do trabalho que vamos fazer. É possível ver uma grande diferença na fluência verbal logo na primeira sessão de terapia. A pessoa verifica que realmente consegue controlar a gaguez e que a resolução do seu problema é apenas uma questão de tempo e de trabalho.
In Medicina & Saúde, Julho 2002
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
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